O Correio Nacional
Ontem eu fui dormir e era março. Você sabe que as vezes, muitas vezes eu percebo que tô sonhando e quando é assim eu quase sempre tento acordar, porque nada me parece melhor de viver do que a realidade. Acordada eu posso ter certeza de algumas coisas que o sonho me tira, da firmeza das paredes que me cercam, que nenhum desfile de caminhãozinho colorido vai aparecer do nada. De vez em quando eu aproveito pra tentar voar, eu visito alguém, faço alguma coisa impossível, mas normalmente eu me faço acordar. Por isso te afirmo com toda a certeza acordada que eu ainda estou dormindo. Primeiro porque o sol nunca mais nasceu nem se pôs, os dias emendam um no outro sem costura, o tempo não existe mais. Mas principal e dolorosamente porque justamente com as paredes eu já não posso mais contar. A dureza do ovo se confundiu com a derretida manteiga nesse calor bizarro que tá fazendo e eu ainda me reconheço todo dia sem acreditar.
Agora tão culpando os meninos da favela que fazem bailão, num país que tem um verme no chefe do executivo, sem ministro da saúde e que importou o vírus pela alta sociedade paulistana. O bailão. Dos que têm todos os direitos violados pelo Estado, esses são agora os culpados pela calamidade social. Metade do país não enxerga, metade não é enxergada. A festa dos meninos da favela é o seu banho de 5 minutos na crise hídrica, um banho de 5 séculos de crise moral que esse país herdou da invasão. Tudo era tão bom antes de eu ir dormir que nem parece que o pesadelo vem de gerações pra trás, nem parece que meu privilégio me minava de quase tudo que era evitável. A gente pode evitar muita coisa mas é inevitável que se lide com o resto, ainda que eu saiba que o inferno são os outros.
É só questão de tempo, né? A única certeza do sonho é que um dia a gente vai acordar. Já diria Teresa Cristina, a dor é como o amor: termina.