tatainha

Um dia eu nasci e eu era o Universo inteiro, depois eu era minha mãe também, daí eu era eu, sem entender muito quem eu era por muito tempo. Os outros foram falando pra me ajudar a montar esse lego colorido, com pecinhas do que cada um podia me oferecer e do que eu escolhi pegar. Todo mundo é meio Frankstein do meio em que vive. Por isso que dói, viu, quando um pedaço da sua perna vai embora assim do nada. Fica um espaço vazio ali que não dá pra repor nem crescer de novo. Ando meio reflexiva com essas paradas de morte e luto ORA PORQUE TUDO A NOSSA VOLTA É MORTE E LUTO NÉ GAY? Precisa justificar nada não, estranho seria se não tivesse pensando nisso. Mas enfim. Ontem eu me dei conta que com o Alzheimer da Di e a morte do Roberto morreu também a Tatainha. 
A Tatainha era uma das minhas personalidades que eu mais gostava, porque era o jeito que meu povo de Ubatuba me chamava, então esse nome significava que eu tava no lugar que eu mais amava no mundo. Eu e o Gui éramos tão fissurados em Ubatuba que a gente saía de casa e 4 minutos depois já começava o mãe, tá chegando? Quando a gente parava no então melhor restaurante do mundo - Bica do Curió - na estrada de Taubaté, o coração já tava batendo mais forte e tudo naquele lugar eu gostava: o lanche de churrasco com queijo branco, os milhares de adesivos de surf nos espelhos e paredes, o cheiro de mato, a crescente excitação de estar quase chegando em Ubatuba. Tudo era mágico no Curió. E depois dele começava a serra que era fascinante com aquele monte de curva e descida e tensão. Um monte de calota nas encostas que eu tentava contar, o desejo fervente que aquela estrada desmoronasse depois que a gente passasse pra gente ficar preso pra sempre em Ubatuba. E quando as curvas acabavam, começava a canção da duplinha do banco de trás que era ch..... che..... cheeeeee.... cheg.......... cheeeeeggggggg..... até 42 minutos depois quando a gente de fato chegava e soltava o CHEGOOOOOOOOOOOOU! Primeiro na casa da Tia Maria, que tinha um fusquinha que a gente brincava dentro (freio de mão solto, fodase), um caminho no quintal que era rodeado de roseira onde eu caí uma vez e me ralei toda, fui chorando contar pra família e todo mundo riu de mim (Grandes Traumas da Minha Infância - capítulo 4, página 89) menos a própria Tia Maria. Onde eu resolvi seguir meu irmão e meu pai que saíram SEM MIM pra andar de bicicleta na rua e eu fui atrás deles e sumi, fiquei uns 20 minutos perdida na rua de trás e quando meu pai me achou ele ficou tão puto, mas tão puto, que ARREMESSOU minha caloi ceci no terreno em frente, em que ela teria se perdido pra sempre se não fosse o Sr. Peres, marido da Tia Maria, meu herói (Grandes Traumas da Minha Infância - capítulo 5, página 102). Era o Peres também que tinha um monte de madeira e prego na sua oficininha e que falava que a gente podia construir uma casa na árvore, daí a gente ficava batendo martelo em prego aleatoriamente na brincadeira mais legal possível. O Peres, como não poderia deixar de ser, morreu do nada um dia. 
Aí a gente ia pra praia do Félix, que era o nome dado ao PARAÍSO. Se você nunca foi na praia do Félix, coloca na lista de coisas pra fazer quando a quarentena acabar. Eu já estive em muitas praias nessa minha vida, eu já estive no caribe, no Nordeste, nas bahamas, na costa azul da França, já estive no Havaí e posso afirmar com certeza pra vocês: nada supera a praia do Félix. Em um canto, o mar é tranquilo, tem um riozinho de água doce onde a gente brincava de lavar a pedra, aquelas pedras gigantes em que a gente subia com ajuda da Di e do Roberto. Tinha uma caverninha que eu morria de medo de entrar, uns caminhos perigosíssimos que levavam até a piscininha onde a gente era jogado pro alto ou brincava com boias. Tinha uma pedra em formato de rampa que quando a onda batia, formava uma cachoeira surpresa e meu pai me segurava lá pra me molhar e cascava o bico do meu medo. Era nessa pedra também que a gente se apoiava pra colocar as nadadeiras e a máscara com snorkel pra ir mergulhando até a prainha secreta que tinha do lado. A gente via tartaruga e até uma moréia uma vez. Eu saía do mar morrendo de vontade de tomar coca-cola e comia um lanchinho de patê de atum com cenoura ralada que mamãe e titias preparavam, dentre outras 38 opções de comida. O povo vinha até perguntar o preço rs. Aí alguém levantava e falava "vamos nas ondas?" Era o momento mais esperado. No outro canto da praia do Félix rolam umas ondas enormes, a praia vai ficando de tombo, com a areia super grossa. A gente ia em bando pra lá, andando o que pareciam quilômetros pra mim, os adultos conversando e eu gostava de ouvir o que eles falavam enquanto tentava pisar na areia sem deixar marca (era fácil porque eu pesava 12kg na época). Aí a gente levava nossas pranchas de bodyboard e entrava no mar - claro - morrendo de medo. A Di e meu pai empurravam a gente nas ondas e quanto mais grave o capote que a gente tomava, melhor. Meu primo Renan conseguia ficar em pé na porra da prancha, não sei como. Mas eu tentava copiar, como eu tentava copiar absolutamente tudo que o espírito livre do Renan fazia. Era em vão. E era super confuso também pra mim porque ele chamava a Di e o Roberto de vó e vô e a Tia Maria de Vó Maria e eu também queria chamar eles assim, porque fodase a burocracia envolvida, eles eram meus avós também. Tá. Daí muitas vezes a gente ficava lá sem prancha mesmo, só tentando não morrer a cada onda gigante que vinha, os adultos rindo, minha mãe tapando o narizinho, meu pai falava pra gente ficar de costas pra onda porque quando ela batia na nossa cabeça, formava um megafone natural então a gente tinha que gritar. Depois, exaustos, a gente voltava pra nossa área e logo era hora de ir embora. Eu me recusava, com o lábio roxinho e os dedo tudo enrugado, falava que ia ~pegar~ só mais uma onda, a ultiminha. Ali eu tinha uma certeza tão grande de que eu queria morar dentro do mar que talvez tenha sido o meu primeiro acerto, minha primeira coluna pra montar quem eu sou hoje e quem eu quero ser. A Tatainha foi quem começou tudo isso, o navio, Santos, o surf. Tudo ideia dela. E todas essas histórias, que são parte de infinitas outras histórias, têm seus significados ligados à ela, à Tatainha. Como eu ouso dizer que Tatainha morreu, né? Se ela tá aqui dentro de mim, essa assombração.

É isso, Frankestein. O pedaço da perna voltou. E haja perna hein!