o cervo

Na floresta o silêncio é cortado apenas pelo barulho surdo de pássaros e pequenos animais que convivem em paz e à distância, evitando assim o contágio por corona vírus. O sol corta com dificuldade a copa densa das árvores imponentes que se aglomeram de máscara, e forma desenhos geométricos e precisos no chão à nossa frente, dando palco para as partículas de esperança que dançam refletidas em luz. Tudo é muito calmo e nós esperamos pacientemente há mais de 11 dias, parados no mesmo lugar. Levantamos apenas para as necessidades fisiológicas que se multiplicam exponencialmente e para buscar o ifood, que chega sorrateiro na portaria e não pode subir. Observamos a natureza pura que transcorre na frente dos nossos olhos com a justiça e paciência característica de Jesus, que se não nos abandonou ainda, saiu para comprar cigarro já há muito tempo. Ainda assim esperamos, e em silêncio, porque qualquer movimento brusco pode colocar tudo a perder. Horas viram dias, expectativa derrete em decepção e começamos a considerar juntar nossas coisas para ir embora de Uber. Quando consultamos a tarifa dinâmica daquele momento desolador que beira o fracasso, um pequeno ruído congela nossos corações. Ali, a curta distância, como que sumonado pelo cheiro de falha de caráter que agora infesta o ar, o mais raro e místico dos animais: o cervo. Ainda filhote, muito desconfiado de tudo que o rodeia, olha pra gente dentro da alma e tira uma catota de nariz com a língua, enquanto o corpo permanece imóvel. Ainda sustentando seu olhar, anoto brevemente o lance da catota que eu julgava ser feita apenas por girafas. Apoio meu diário de campo muito lentamente no chão para que nada seja interpretado como agressivo. Esse animal é extremamente sensível a qualquer mudança de temperatura e pressão, o menor movimento errado pode colocar tudo a perder. Em uma atitude completamente louca e impensada, experimento sorrir para o cervo que, surpreendentemente, sorri de volta pra mim. Invadida pela felicidade alucinógena do sucesso dessa interação, confiante dos símbolos que se estabeleceram dentro dessa relação recém formada, estendo bem devagarzinho meu saquinho de MDMA para que o cervo possa avaliar e, com sorte, estender seu próprio dedo mindinho. 




Todos os outros, atônitos desde o sorriso, sussurram para que eu retire a oferta, você já foi longe demais. Mas insisto, cometo o impensável ato de dar um passo em direção ao corvo, que fica estático. Seus olhos encaram o meu, nossos corações batem no mesmíssimo ritmo acelerado, ali temos uma conexão que os outros jamais entenderiam. O cervo dilata suas pequenas narinas para investigar o conteúdo do saquinho e, quebrando com certeza a barreira do som, dispara na direção contrária, desaparecendo na floresta depois de 1 milissegundo. 
Fico parada na mesma posição por alguns instantes, hipnotizada pelo que havia acabado de acontecer. Os gritos de raiva dos meus colegas me despertam do transe e recebo todos os xingamentos em várias línguas que eles disparam pra mim. Por que eu fui tão longe? Agora o cervo sumira e sabe-se lá quanto tempo demoraria para voltar a entrar em contato com a gente. 
Mas eu sabia - dentro do meu coração eu sabia - que aquele momento ficou marcado em nós dois e que sem que ninguém tivesse se dado conta, ali havia nascido algo indescritível que nos conectaria para sempre: o amor. E eu sorri, mais uma vez enfeitiçada pela magia dos últimos segundos.
Só voltei à consciência quando um dos meus companheiros trombou em mim, no meio da correria que se instalara repentinamente. Todos recolhendo o que conseguiam muito rápido e correndo em direções opostas, completamente desesperados. Ao fundo, uma sirene. 

O cervo tinha chamado a polícia.

Filho da puta!